Não havia como imaginar o quanto a vida mudaria quando mais uma menina entrou naquela sala. Uma menina de 14 anos com surdez de 96% em ambos os ouvidos, usando aparelho auditivo , tímida e com os olhos no chão.
Quem perdeu o chão fui eu, educadora social de artes cênicas, achando que a arte se comunicava como mundo! Percebi que o instinto era a única saída para nos comunicarmos, não tenho curso de Libras ( a linguagem de sinais) , e nunca imaginei que precisaria de um curso destes, por pura ignorância. Eu e Tamara nos entendemos no primeiro olhar, mas a comunicação e a apresentação mútua demoraram alguns minutos para ser compreendida, entendi seu nome numa sensação e pela sonoridade.
Inserida imediatamente na minha turma e na oficina de artes cênicas, quem mais sofreu fui eu. O que fazer? Quinze adolescentes ditos “normais” e a garota “diferente”! O pior de tudo era a “educadora” sem experiência e em pânico.
Ela participou da primeira aula com maestria , sorrisos e interesse. Aliás, devido ao meu jeito agitado, falante e dançante de ser , percebi que a menina tinha me apelidado de “doidinha”. Ela fazia sinais com as mãos e sorria quando passava por mim , eu retribuía com um medo disfarçado ( sou uma atriz, disfarço bem!)
Desde então nos comunicamos por instinto. Vejo que preciso de um curso de Libras com máxima urgência , aprendi o significado de algumas palavras através de um livro e “bobinha ( simbolizado com a mão aberta balançando na teta)” foi um outro apelido que ganhei posteriormente.
A menina se dá bem com todo mundo , participa com suas poucas e normais limitações , vem se tornando cada dia mais “debochada” , amiga e tenho a impressão de que já esta paquerando um dos amigos da turma de teatro. Quem mais sofre na verdade sou eu, me sinto muda, cega , surda e deficiente em todos os sentidos.
Como pude viver até hoje sem conviver com alguém tão especial? Aprendo com ela todo dia. Na verdade a turma toda aprende com as nossas dificuldades de conviver num mundo de multiplicidades.
Percebo a cada dia o quanto sou frágil, fraca e tão bobinha...
Entender o mundo dela e de todos os deficientes é necessário, mas o principal é abrir a mente e as portas porque o maior medo de lidar com estas “pessoas especiais”, não vêm delas e sim da autodefesa dos pobres mortais que se julgam “normais”, como eu e você!